Universitário Mal

Universitário Mal

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Maurício Ludovico era estudante do quarto ano de medicina. Queria especializar-se em ortopedia. Cursava uma faculdade particular. Porém, como seu pai era um rico empresário da cidade, nunca tivera problemas financeiros. Sendo assim, todo mês a tesouraria da universidade descontava o gordo cheque, emitido por seu pai, no valor de dois mil duzentos e trinta reais. Mas há seis dias o jovem, de vinte e um anos, estava muito arredio, afastado. Muito ausente da família. Não almoçava mais à mesa com seus pais e seu irmão mais novo. Não ia ao culto da igreja. Não ensinava mais o seu irmão a nadar na enorme piscina da casa. Enfim, distante da família. E isso resultou em uma conversa rápida e pouco produtiva com Norma, sua mãe. Ela o abordara quando ele penteava o cabelo, a fim de ir para a faculdade.
- Filho, que está acontecendo? – Ela suspirou ao final da frase, como se reunisse muita força para falar aquilo. Ele desviou os olhos do espelho para ela e em seguida tornou a olhar-se.
— Ei. Você me ouviu?
— Ouvi. – Falou, enquanto ajeitava o topete. — Não está acontecendo nada. Só estou muito atarefado na faculdade e, portanto, estou redobrando meus estudos. Faço uma parte teórica e outra prática. O aluno de medicina tem de treinar, treinar e treinar. Só assim chega à perfeição. – Ela olhava-o, interessada. — Vocês não queriam um médico na família? Agora que eu tomei gosto pela profissão, têm de agüentar.
— Quer se encontrar com o psicólogo? Ligo para ele e marco uma consulta para você. O que acha?
Ela o olhou esperando a resposta.
— Tive uma sessão com ele semana passada. Dessa vez, sinto que ele vai me ajudar.
— Está bem. – A mãe alegrou-se um pouco. — Por que não comentou comigo que procurou o Dr. Bertrand?
— Esqueci.
— Você anda muito estranho. Não quero que esqueça de sua família.
— Não esquecerei.
— E desde quando passou a tomar café? – Ela inquiriu rispidamente.
— O quê? – Ele respondeu, virando-se para ela.
— É isso mesmo que você ouviu. Desde quando passou a gostar de café?
Ele arqueou as sobrancelhas e penteou as costeletas.
— Aí, está vendo? Preciso fazer minha barba. Está grande! Um universitário do curso de medicina não pode ficar com essa barba cerrada andando para cima e para baixo na academia do saber. Se fosse um aluno de engenharia, tudo bem. Se fosse um futuro analista de sistemas, tudo bem. Se fosse até mesmo um estudante de odontologia menos mal, mas um futuro médico, não cai bem! – Ele falou rápido, como se tencionasse desconversar o assunto citado por sua mãe.
— Tudo bem. Faça sua barba. Mas enquanto isso diga: e o café?
— Que café?
— Esse cheiro forte de café que vem de seu quarto. Onde aprendeu a gostar de café? Por que café?
— Na faculdade. – Afirmou lacônico.
— Na faculdade? – Repetiu sua mãe, incrédula.
— Na faculdade! – Ele exclamou.
— O que mais se aprende a fazer na faculdade além de cuidar de pessoas e a tomar café?
— Mãe eu tenho que ir. – Ele a beijou a testa e saiu. Nem obedeceu à ordem de esperar e terminar a conversa.
— Vou passar o problema para seu pai. – Ela gritou.
— Fique à vontade. – Ele redargüiu, ironicamente, antes de sair.
*****
Naquele mesmo dia, entretanto, à noite, Élson, o pai de Maurício, já havia tomado seu banho e estava jantando. Foi nesse momento que Norma tocou no assunto do filho mais velho.
— Maurício está diferente. E isso faz exatamente seis dias. Coração de mãe não se engana. Tentei conversar com ele. Mas ele é esperto. Ele é igual a você, Élson.
— Perguntou sobre o café? – O pai falou entre uma mastigada e outra.
— Sim. Ele desconversou e não me respondeu com sinceridade. Disse que aprendera a gostar de café na faculdade. O que acha?
— Pode ser – julgou o pai. — Sabe como são os universitários de hoje em dia.
— Creio que não. Ele nem sabia fazer café e agora creio que saiba. E outra coisa: não deixa ninguém entrar em seu quarto mais para nada. Parece que esconde algo muito valioso lá dentro. Será que nosso filho está guardando drogas no quarto? Ultimamente o vejo um tanto rebelde.
O pai levantou-se asperamente e bateu na mesa com força. — Drogas? Não tenho filho drogado. Vou dar uma lição nesse moleque. – Durante a frase, ele cuspiu alguns pedaços de comida, sem intenção. Ao fim da expressão, já estava vermelho qual um tomate.
— Não, Élson. Nem temos certeza. – O pai ficou resmungando ante a frase bastante lógica de Norma. Isso era fato; eles nem tinham certeza do envolvimento do filho mais velho com os malditos entorpecentes. — Ele comentou que procurou o Dr. Bertrand e que achava que agora ele poderia ajudá-lo.
— Tudo bem. No feriado ele deve ir à praia com a namorada. Deixamo-nos ir e depois contatamos um chaveiro que nos abrirá a porta de seu quarto. Assim veremos o que ele esconde lá dentro.
— Ótima idéia. Fica combinado assim. – Aquiesceu Norma.
— Mas, antes, vamos ligar para o Dr. Bertrand e vamos conversar sobre Maurício. Quero saber alguns detalhes.
Élson pegou o telefone celular e discou uma seqüência de números. Esperou um pouco e anunciou:
— O telefone celular está chamando, porém, ele não atende. Sabe o da residência dele?
— Não sei. – Disse a mãe.
— Não tem problema, amanhã tentaremos outra vez.
*****
No feriado de 15 de novembro, Maurício saíra com a namorada em direção ao litoral. Iria passar o dia na casa de parentes da jovem. Sua mãe, que o estava vigiando desde cedo, percebeu quando ele pegou seu carro e saiu do quintal. Nesse momento, ela chamara Élson para incursão ao quarto do filho. O pai contatou o chaveiro que era seu conhecido. O profissional abriu a porta e foi recompensado pelo pai do jovem, que nem o deixou entrar no quarto.
— Estão sentindo um cheiro forte de café? – perguntara o chaveiro.
— Estamos sim. Nosso filho gosta muito de café. É só isso.
— Entendo. Bom... está pronto. Qualquer coisa é só chamar. O senhor tem meu telefone.
— Muito obrigado, Francisco. Aqui está seu dinheiro.
— Não, senhor Élson, isso aqui é muito.
— Por favor. – Interrompeu o homem. — Aceite. É de coração. É pelo feriado.
— Oh, sim. Muito obrigado. Passe bem.
Depois de acompanhar o homem até a saída, o casal retornou e entrou no quarto do filho.
*****
O pai entrou à frente. A mãe estava logo atrás. O cheiro de café entrou nas narinas dos dois. Ali, eles perceberam que o cheiro não era de café puro. Havia algo misturado ao cheiro de café. Não souberam distinguir o outro odor. Élson tentou acender a luz com o interruptor, entretanto, não conseguira. A luz parecia estar queimada. Ele resmungou e caminhou devagar quarto adentro. Mas subitamente parou.
— Vou pegar uma lanterna. Está muito escuro aqui dentro. Vem comigo ou fica aí?
— Não me deixe aqui sozinha. Eu vou também.
Alguns minutos depois eles retornaram ao quarto.
Viram a cama de Maurício, a escrivaninha, uma estante e viram uma mesa, ao fundo. A qual era coberta por um lençol verde claro.
— Que mesa é aquela, Norma? – perguntou o pai.
— Não sei ao certo, mas ele havia subido com uma mesa de montar, há alguns dias atrás. Falara que era coisa da faculdade. Mas agora ela está parecendo um tanto grande. Não percebi que tinha esse tamanho todo. Lembro-me, também, que levou alguns dias subindo com uma mochila cheia nas costas. Ele disse que eram peças da mesa. Eu achei estranho, pois vi a mesa desmontada em suas mãos enquanto ele subia as escadas. Ele falou que eram as pernas da mesa e outras coisas. Então me calei.
— Está certo. Vamos olhar mais de perto.
— Que cheiro nauseante. – Ela sussurrou atrás do marido e sentenciou: — Parece cheiro de bicho morto.
— Vamos olhar esse lençol. – E Élson puxou o pano verde. Um cheiro podre exalou com o movimento do tecido. A lanterna iluminou um cadáver que mais parecia um boi de tão inchado. A língua do extinto, enegrecida, estava exposta numa careta bizarra. O corpo estava nu e em adiantado estado de putrefação. A mulher gritou de medo. O homem recuara um pouco ante a cena. O morto estava com uma grande incisão no tórax, através da qual Élson reparou, com o foco de luz, alguns órgãos que não puderam ser identificados. A calota craniana havia sido cortada e o cérebro pendia um pouco para fora, já morto. Élson reparou nas axilas do cadáver: pó de café. Muito pó de café. Os braços, pernas, mãos, pés e tronco estavam todos unidos por suturas bem acabadas aos olhos de Élson, um leigo no assunto.
— Pelo amor de Deus, como ele entrou com esse corpo aqui?- A mulher perguntou, enquanto segurava a gola de sua blusa sob o nariz.
— Temo que tenha entrado aos pedaços dentro da tal mochila. – Disse o pai.
— Mas para que o café aí? – A mulher perguntou depois de lastimar tal assertiva do marido com outro gritinho histérico.
— Jesus Cristo. – O homem havia entendido a finalidade do café. — Era para disfarçar o cheiro putrefato do cadáver, Norma. – Revelou o pai do universitário, pesarosamente.
Então ele verificou todo o corpo do cadáver com a lanterna, atendo-se com mais acuidade no rosto do defunto. Em seguida falou um pouco desesperado.
— Jesus. – E isso assustou Norma, que estava trêmula e encolhida atrás dele, somente reparando nas borras de café ao redor do falecido.
— O que foi dessa vez, homem? – Ela falou em um tom angustiado.
O homem pegou o celular e fez uma ligação. Depois os dois ouviram um som estranho. Algo vibrando na escrivaninha de Maurício.
— É o celular dele. – Ela falou enquanto se deslocava a fim de pegá-lo. O foco da lanterna agora estava nela. E Élson viu perfeitamente seu rosto de dúvida ao olhar no visor do telefone.
— Mas esse celular não é dele!
— Eu sei. – O pai retrucou com a voz trêmula e nervosa. — Este celular é o do Dr. Bertrand.
A luz ainda estava no rosto de Norma quando ela deu um grito de horror e soltou o aparelho que bateu forte contra o chão do quarto, levando as mãos à boca, em seguida. Ao sair correndo do cômodo quase regurgitando o café da manhã, deixou o foco de luz diretamente na parede do quarto onde havia uma inscrição talhada com objeto pontiagudo, talvez um bisturi. O pai se aproximou e leu a frase com a ajuda da lanterna.
“Primeiro eu mato a fim de aprender mais sobre a morte. Depois eu salvo. É tempo de matar. É tempo de aprender.” Abaixo da frase havia outra escrita: “MAU” que era como seu filho sempre abreviava seu próprio nome.