Um Prego no Jazigo

Um Prego no Jazigo

NUNCA BRINQUEM COM AQUELES QUE DESCANSAM EM PAZ; NUNCA APELEM AOS ESPIRITOS DAS TREVAS.
O vento teimava em levar tudo à sua frente, fustigando a noite chuvosa que se ensombrara. As casas pareciam assustadas na sua viuvez urbana, e eu deambulava pela rua mais dois amigos: O João e o Manuel. A noitada fora de copos e gajas e trazíamos connosco uma garrafa de vinho que íamos tragando, passando-a de mão em mão. Riamos e brincávamos os três pela estrada fora sem caminho e sem rumo.
- Vamos até minha casa – Sugeriu o João com dificuldade. A língua enrolava-se-lhe na boca quando tentava dizer qualquer coisa. - Boa ideia – respondi - Estou farto de andar aqui às voltas pela rua.
Do local onde estávamos até à casa dele, demorámos apenas uns minutos.
Ele vivia num anexo ao lado da casa dos pais. Tinha portanto, total independência para fazer o que quisesse.
Lá dentro sentamo-nos no maple e continuámos a beber vinho e cerveja que ele trouxe do frigorífico, fresquinha.
Inesperadamente, apercebi-me que o João fazia um charro. O anel de ouro branco cintilava-lhe nos dedos esguios enquanto segurava a mortalha. Depois acendeu o cigarro, deu duas “passas” e passou o charro ao Manuel. O ambiente estava a tornar-se numa loucura.
- Vamos jogar poker – sugeriu o Manuel.
- Boa ideia – concordei.
- Não – discordou o dono da casa – vamos fazer um jogo diferente.
- o quê? – Indaguei
- Vamos fazer o jogo dos espíritos – ordenou.
- Jogo dos espíritos? – Questionou o Manuel.
- Não gosto disso. Já ouvi contar umas merdas acerca desse…
- Deixem-se de mariquices. – Asseverou ele cortando-me a frase. Trazia o tabuleiro numa mão e uma garrafa de vodka noutra.
- Que raio é isso? – Indaguei.
- É o tabuleiro de Ouija. É usado em adivinhação e espiritualismo. As letras do alfabeto e estas (”sim”, “não”, “adeus” e “talvez”) – disse ele, exibindo-nos o tabuleiro - servem para formarmos uma frase que será construída depois de rodarmos um ponteiro sobre o tabuleiro. É o jogo dos espíritos. Alguém tem medo?
Nem eu nem o Manuel respondemos. E foi em silêncio que concordámos em jogar. A personalidade persuasiva do João convencia-nos a fazer tudo o que ele queria. Sempre foi assim.
Começámos por unir os dedos sobre o ponteiro e o João lançou a primeira pergunta.
-Algum de nós vai morrer?
Largamos o ponteiro e este, após rodar várias vezes, ficou parado no lado superior esquerdo, mesmo a apontar para a palavra “sim”.
Rimo-nos.
De seguida voltamos a pressionar o ponteiro, e foi a minha vez de fazer a pergunta.
Quando?
O ponteiro girou e girou, até que faleceu nas letras “H”, depois na “O”, seguidamente na “J”, e por fim no “E”.
- Hoje? – Questionámos nós em uníssono.
-Este jogo é uma banhada! – Asseverei .
Foi a vez de o Manuel fazer a pergunta.
- Como vai essa pessoa morrer? – Questionou ainda a rir.
O Ponteiro voltou a rodopiar e apontou as letras “J” “A”Z” “I” “G” “O” “ e de seguida “P” “R”E” “G” O”.
Ficámos a olhar uns para os outros. Confesso que não me sentia bem e acabei por disparar:
- Vamos acabar com esta palhaçada. - Levantei-me e dirigi-me para a porta. Apercebi-me que o Manuel também se tinha levantado, dando mostras de desistir daquela brincadeira sinistra.
O João, meio cambaleante, abandonou o tabuleiro e dirigiu-se até nós para nos expulsar de sua casa, mas acabou por desistir da ideia a meio de percurso e acabou por sair connosco. Ainda olhei para trás e reparei que o tabuleiro ficara abandonado cima da mesa, mas não dei mais importância ao assunto.
Voltamos para o frio da rua e caminhámos pela noite, a conversar sobre aquele jogo lúgubre que me tinha afectado a mim ao Manuel.
Aparentemente o João estava bem. Além de bêbado, estava bem.
A bruma adensara-se, e...inesperadamente perdemos o rumo até que demos de caras com o muro do cemitério, cujos densos portões se elevaram ameaçadoramente sobre as nossas cabeças.
-Este local é sinistro. – Balbuciou o Manuel meio encolhido.
- Sim, mas afinal… onde estamos?...Que local é este?
– Inquiri eu, meio confuso.
- É, pá! Estou rodeado de mariconços! – Escarneceu o João, exibindo o seu ar destemido.
- Mariconços, não! Isto mete medo! – Contestei.
- Mas qual é o vosso problema? Não vêm que estamos no cemitério da nossa aldeia; a única diferença é que está nevoeiro e ele parece diferente! – Afiançou o João, que seguidamente se sentou no muro a fumar. O anel cintilava-lhe no dedo anelar. Ele trajava uma extensa capa de chuva que lhe abonava um ar medonho e aterrador.
Confesso que aquele modo arrogante do João me importunou tanto que tive vontade de lhe arremessar com uma pedrada à cabeça. Todavia, o meu espírito fora travado por uma ideia macabra, e não demorei nada para a partilhar com o Manuel.
-Vamos “picá-lo” para ele ir lá dentro ao cemitério, e quando ele lá estiver, fugimos e deixamo-lo aí sozinho. O que achas? – Sussurrei eu ao ouvido do Manuel.
-Boa ideia, e como o vais convencer a ir lá dentro?...
– Inquiriu o meu amigo coçando o queixo.
-Deixa isso comigo. Tens aí uma nota de cinquenta euros? – Perscrutei.
-Sim, tenho aqui! – Disse o Manuel, entregando-me o dinheiro sem qualquer hesitação.
Apercebi-me que o João continuava em cima do muro do cemitério, mas agora prostrava-se deitado de papo para o ar a fumar outra ganza.
Dirigi-me então até junto do João, e foi com algum assombro que lhe dirigi o repto.
- Olha João, eu e o Manuel apostámos cem euros em como tu não és capaz de ir lá dento ao cemitério pregar um “prego no jazigo” que estiver mais a “norte”...
- Ah, estão a ver se me conseguem acagaçar por causa daquela parvoíce do jogo dos espíritos?... Vocês apostaram, o quê?..Cem euros?..ah, já são meus! – Balbuciou ele com uma voz tremendamente fria.
- Está aqui um prego. – Declarou o Manuel, retirando o espeto de aço do bolso, que encontrara... não sei bem onde, nem como. – Podes pregá-lo com esta pedra.
E foi com enorme frieza, que o João deitou o cigarro fora e saltou o muro para outro lado, numa demonstração clara de ousadia extrema.
- Os cem euros já são meus! – Ecoou a voz dele do meio das campas.
A noite turvara-se ainda mais numa bruma intensa, e inesperadamente, levantou-se uma forte ventania que arremessou as folhas dos ciprestes pela estrada adiante. Quando eu e o Manuel nos preparávamos para fugir daquele local perverso, escutámos os baques secos provenientes das batidas no túmulo dos punhos do João, que intervalava as pancadas com um sorriso sinistro e sombrio. Seguidamente, o ruído cessara, e dera lugar a um silêncio inquietante. A noite parecia normal, mas fora quebrado por um grito agudo e estridente proveniente da garganta do João, que gelou a minha alma de medo!
Prontamente, eu e o Manuel trepámos o muro e fomos ao encontro do nosso camarada a fim de percebermos o que lhe tinha acontecido. Ao fim de alguns metros, lá estava o João caído junto ao túmulo. Notei que o seu corpo se prostrava numa posição torta e estranha. Na mão ainda segurava a pedra com que pregara o túmulo. O anel ainda cintilava.
- João, João! – Bradou o Manuel, tentando deslocar o seu corpo para o endireitar.
E foi com um terror arrepiante que verificámos que o João pregara a sua capa de chuva ao túmulo sem dar conta disso, e ao virar bruscamente as costas, a sua capa ficara presa ”, o que o matou de MEDO!