A menina Pirocinética

A menina Pirocinética

 

O orfanato do mosteiro de São Felipe nunca mais foi o mesmo desde a chegada daquela estranha menina. A pequena garota loira, de olhos azuis e traços fortes, jamais pronunciou nenhuma palavra desde sua vinda. Não se relacionava com as demais crianças, limitando-se a balançar a cabeça para responder as perguntas das monjas e padres.Sendo assim, a introspectiva garota passou a ser chamada pela alcunha de Berenice.
A menina pouco dava trabalho. Era obediente e recatada. Certamente, sua inércia e falta de interatividade fosse o resultado dos terríveis acontecimentos que vitimaram toda a sua família num vilarejo daquelas proximidades.
A residência da família ficava localizada numa clareira; numa noite sem luar, incendiou-se completamente, assim como um pequeno estábulo que ficava acoplado à casa. Paredes, móveis e vidas viraram pó. Pai, mãe, mais os dois irmãos maiores foram mortos, cremados em meio a tudo o que envolvia aquela propriedade. As altas labaredas e a fumaça carregada que subiu ao céu, foram avistadas pelos vizinhos que chegaram tarde demais para tentar salvar alguma coisa.
Por milagre, a filha caçula do casal morto foi encontrada com vida, sentada na grama, encostada em uma árvore, abraçando os próprios joelhos, mirando o que sobrara de seu lar. O vestido estava todo sujo de fuligem, assim como a pele branca do rostinho angelical.
Era difícil entender como uma tragédia de tamanhas dimensões fora imune à menina; a figura mais indefesa da família. A garota não trazia nada nas mãos, a não ser uma delicada argola de metal de onde pendia uma brilhante chave prateada, e não houve nada que pudesse fazer a pequena Berenice largar aquele singular artefato.
As primeiras semanas passaram sem que nada afetasse a rotina do abrigo infantil. Porém, em determinada noite, quando os ventos do outono haviam adquirido um silvo tenebroso em contato com os finos galhos das árvores secas que davam para o fim do mosteiro, foi quando também se ouviu, pela primeira vez, a doce voz de Berenice.
Em meio ao sono cândido da criança, um baixo choramingo despertou as outras três companheiras de quarto de Berenice.Rafaela, aproximou-se e tocando o ombro da menina adormecida, tentou acordá-la, sem sucesso.
A menina, ainda com os olhos cerrados, começou a repetir num apelo sentido:
- Minha boneca – suspirava e repetia – Minha boneca.
As garotas sacudiram Berenice tentando livrá-la daquele que parecia ser um pesadelo, porém, foram interrompidas quando o candelabro que vertia a parca iluminação do quarto, caiu misteriosamente do teto, que em contato com a cortina que descia pela janela de madeira, fez brotar fogo que ameaçou se espalhar pelo quarto todo. Com o grito das meninas invadindo os corredores do abrigo, os padres e monjas conseguiram controlar o início de incêndio que poderia ter conseqüências trágicas naquela casa de Deus.
Berenice não despertou de seu sono naquela noite, e pela manhã, agiu como tudo estivesse da mesma ordem dos dias normais.
As crianças que já mantinham por ela, uma certa desconfiança pelo modo contido como esta se comportava, alheia a tudo a sua volta, começaram a nutrir um disfarçado medo pela garota com hábitos tão insólitos.
A curiosidade, tão usual às crianças, aliada a peraltice comum da idade, estabeleceram o que, desde o início, seria questão de tempo.
Berenice, seria o centro das atenções nas brincadeiras. O foco era a pequena chave que por nada no mundo se desgrudava dos delicados dedos da garota, como se sua argola fosse o mais valioso dos anéis.
Naquela noite, recolhendo-se aos seus quartos, os garotos esperaram o apagar das luzes dos largos corredores do orfanato, e juntaram-se na porta do quarto onde Berenice já ressonava.
Um grupo, de dez crianças entre meninos e meninas, aprumou-se com cuidado ao lado da cama da garota. Rafaela, foi a responsável por tirar a pequena argola do dedo anelar da amiga. Com todo cuidado, a menina soltou a chave da argola prateada e a escondeu sob o travesseiro. As demais crianças apressaram-se em voltar cada qual para o seu quarto, esperando pela reação de Berenice, quando esta acordasse e desse conta da falta de seu precioso tesouro.
O dia amanheceu e surpreendentemente, Berenice não notou a falta da chave em seu dedo. Desceu as escadarias que davam para o refeitório. Preparou-se para o desjejum. As outras crianças não conseguiam mais conter-se para saber a reação da estranha garota pela falta de seu único e misterioso bem.
Provocada pelas outras crianças ansiosas, Rafaela se pôs em pé na cadeira de frente à Berenice e balançou a pequena chave prateada que brilhou em sua mão.
A menina voltou os olhos para o dedo anelar, de onde conferiu que apenas a argola continuava em sua posse. As sobrancelhas da garota fizeram um desenho assustador em seu rosto, que em nada lembrava a da garota recatada, sem fala de minutos atrás. Seus olhos se estreitaram e seus punhos se cerraram fazendo as veias azuladas dos punhos dilatarem-se.

 

Um mormaço tomou o ar do refeitório e foi da cozinha que se ouviu a primeira explosão. O bujão de gás se liquefez em chamas, atirando as duas monjas, que preparavam o café da manhã, para o alto. O teto do refeitório abriu-se como uma clarabóia, levando para cima mesas e cadeiras, que foram sugadas com potência, como se um furacão incandescente estivesse engolindo tudo o que se apresentasse a sua frente. As crianças rodopiavam no ar, e as paredes de azulejo branco começavam a ser corroídas pelo fogo que brotava do nada. A fumaça cegava os padres que, aturdidos pelo assombro do que acontecia, tentavam salvar as crianças indefesas que não sabiam para onde correr. A porta principal do refeitório arrebentou-se num estrondo ensurdecedor, encerrando de uma vez, crianças e adultos dentro daquele enorme forno. Berenice assistia a tudo permanecendo sentada em sua cadeira, imaculada, saboreando o sofrimento daqueles que eram consumidos vivos pelo fogo inclemente.
Quando não se era possível mais ouvir sequer um grito, súplica, ou lamento humano, foi que Berenice levantou-se de sua cadeira. Ela caminhou na direção de um amontoado de carne queimada, encostada em uma das paredes chamejantes. Seu vestido branco, roçava nas cinzas e carvão que surgira da madeira das mesas e cadeiras. Aproximou-se de um dos pequenos montes que exalava aquele horrendo cheiro de morte, e abaixou-se procurando algo. Levantou um reduzido pedaço de matéria, do que há poucos minutos fora o braço de Rafaela, agora totalmente negro, carbonizado, e retirou com toda cautela, a chave prateada de dentro do punho fechado da garota. Passou o pequeno tesouro pelo vestido para retomar seu brilho original e levantou-se caminhando em direção da porta principal que já não existia mais.
Ao sair do abrigo em seu piso térreo, ainda virou-se para trás ; assistiu todo o andar de cima, onde ficavam os dormitórios das crianças, ser engolido pelo fogo, que já invadia também a tímida capela que dava de fundos ao monastério.
A expressão de Berenice em nada se alterou. Encaixou a chave prateada na argola de seu dedo, e seguiu pela estrada de terra batida com o cenário de morte e destruição às suas costas. As labaredas chegavam há mais de cinco metros de altura, e em poucos minutos, o vento do outono espalhou as chamas ardentes pelos galhos secos das árvores, transformando tudo numa gigantesca fogueira.
O tempo passou e jamais foi possível descobrir a causa daquela terrível tragédia sem precedentes, responsável por vitimar um grande número de crianças inocentes, além dos membros da igreja que faziam daquele lugar, sua morada.
Alguns ainda relatam, que foram encontradas pequenas marcas de pés descalços que seguiam dos arredores do mosteiro até a clareira onde outrora ocorrera a mesma tragédia em condições menores, mas da mesma forma misteriosa. Lá, rezava a lenda, que ainda foi encontrada uma velha caixa de madeira com a portinhola aberta, onde em tempos remotos se guardavam diferentes tipos de bonecas de pano.